Miguel Oliveira, de apenas 15 anos, ganhou notoriedade nacional ao se apresentar como “pastor mirim” nas redes sociais e em eventos religiosos por todo o país. Com uma linguagem madura, discursos emotivos e promessas de “cura pela fé”, ele acumulou mais de 1 milhão de seguidores em plataformas como Instagram e TikTok. Sua imagem foi amplamente compartilhada em vídeos de cultos, onde aparecia pregando, orando e, em alguns casos, rasgando laudos médicos como símbolo de milagres supostamente realizados.
Contudo, a ascensão meteórica do garoto despertou preocupações por parte de órgãos de proteção à infância e adolescência, especialmente no que diz respeito à sua exposição pública e ao possível uso de sua imagem em um contexto de exploração infantil com viés religioso.
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O que motivou a intervenção do Conselho Tutelar?
Diante da crescente repercussão do “pastor mirim”, o Conselho Tutelar de sua cidade determinou medidas protetivas urgentes: Miguel foi proibido de realizar cultos, pregar presencialmente ou virtualmente e de utilizar redes sociais. Também foi determinado que o jovem retornasse imediatamente às aulas presenciais, com o objetivo de garantir sua permanência no ambiente escolar, essencial para seu desenvolvimento integral.
Segundo o Conselho, a decisão foi embasada no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que assegura o direito ao desenvolvimento saudável e à proteção contra qualquer forma de negligência, violência, discriminação, exploração e crueldade.
O que diz a lei?
A Constituição Federal garante o direito à liberdade religiosa para todos, inclusive crianças e adolescentes. O artigo 5º estabelece a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença. Já o artigo 16 do ECA reforça que a criança tem direito à liberdade de pensamento, crença e culto religioso, respeitando a orientação dos pais ou responsáveis.
Porém, como explica a promotora da infância e juventude Luciana Oliveira, “a liberdade de crença não é absoluta quando confrontada com outros direitos fundamentais da criança, como o direito à educação, à proteção emocional e ao desenvolvimento pleno. Quando há indícios de exposição indevida ou de sobrecarga psicológica, o Estado tem o dever legal de intervir”.
Responsabilidade dos pais: limites e consequências
A decisão do Conselho Tutelar não foi dirigida apenas a Miguel, mas também aos pais. O órgão alertou que, caso as determinações não sejam cumpridas, os responsáveis poderão ser afastados da guarda do filho. Essa medida, embora extrema, é prevista no artigo 129 do ECA e pode ser aplicada quando os pais colocam em risco a integridade física ou psicológica dos filhos.
O debate, nesse contexto, se intensifica: até que ponto os pais têm autonomia para permitir que seus filhos exerçam atividades religiosas publicamente? E qual é o papel do Estado quando tais práticas ultrapassam os limites do saudável?
O sociólogo e especialista em religiões, Cláudio Ribeiro, destaca: “Há uma linha tênue entre permitir que o filho expresse sua fé e instrumentalizá-lo como ferramenta de prestígio ou lucro. A fé infantil deve ser protegida, não explorada”.
A influência das redes sociais
Outro ponto crucial do caso é o uso intenso das redes sociais. Miguel produzia conteúdo frequente, interagia com seguidores e fazia transmissões ao vivo. A manutenção dessa rotina exige tempo, disciplina e, muitas vezes, pressão psicológica – o que levanta dúvidas sobre quem está por trás da gestão dessas atividades e se o jovem tem plena consciência das implicações da sua imagem pública.
Para a psicóloga infantil Andreia Matos, a fama digital precoce pode ser prejudicial: “Crianças e adolescentes em situação de exposição midiática enfrentam riscos graves, como estresse, ansiedade, perda de privacidade e pressão para manter um personagem. Quando associamos isso à religião, o impacto pode ser ainda mais profundo, confundindo limites entre realidade e expectativa divina”.

Reações do público e dos defensores da fé
O caso gerou forte polarização nas redes. Parte do público acusa o Estado de censura religiosa e afirma que o jovem estaria sendo perseguido por sua fé. Já outro grupo defende a ação do Conselho Tutelar como necessária para proteger um adolescente vulnerável de uma trajetória pública que pode ter consequências irreversíveis.
Miguel, por sua vez, publicou uma mensagem misteriosa após a proibição, afirmando que seu “retorno será assustador”. A publicação causou polêmica e levantou suspeitas de que, mesmo diante da decisão judicial, ele estaria sendo incentivado a continuar se posicionando como uma figura pública.
Qual é o papel do Ministério Público e da Justiça?
O Ministério Público acompanha o caso e poderá judicializar a situação caso haja descumprimento das orientações do Conselho Tutelar. Isso inclui, se necessário, a responsabilização criminal dos pais por omissão ou negligência.
Além disso, a Justiça pode determinar medidas mais severas, como a suspensão ou perda do poder familiar, caso sejam confirmadas evidências de exploração infantil, uso indevido da imagem ou abandono escolar.
Caminhos possíveis
O caso de Miguel Oliveira é um alerta para famílias, instituições religiosas e formadores de opinião. A infância deve ser protegida, mesmo quando envolta em temas delicados como a fé. O equilíbrio entre liberdade religiosa e proteção da criança é frágil, mas necessário.
Se a família deseja que o filho continue manifestando sua crença, é possível fazê-lo em ambientes seguros, com supervisão adequada e respeitando seu direito ao estudo, ao lazer e ao desenvolvimento psíquico.
A situação do pastor mirim escancara os desafios éticos, legais e sociais de lidar com a exposição infantil em tempos de fé digital. A sociedade precisa refletir sobre os limites entre liberdade e responsabilidade, especialmente quando se trata de crianças. A fé é um direito, mas a infância é um dever.