A cena é comum em muitas cidades brasileiras: o delivery chega, mas o entregador avisa que está na portaria. Do outro lado, o consumidor questiona por que precisa descer até o térreo. A pergunta que fica é: o entregador deve subir até a porta do apartamento ou não?
Essa dúvida, que ganha força com a popularização dos aplicativos de entrega e a rotina cada vez mais acelerada dos centros urbanos, envolve não apenas conveniência, mas também normas de segurança, legislação condominial, diretrizes de trabalho e até mesmo aspectos jurídicos.
Neste artigo, vamos destrinchar o que diz a lei, o que apontam os especialistas e como o bom senso pode ser a chave para evitar conflitos entre moradores, entregadores e síndicos.
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O que diz a lei sobre entregas em condomínios?
A legislação brasileira não obriga o entregador a subir até a porta do apartamento. O Código de Defesa do Consumidor (CDC) garante o direito à entrega adequada, mas não especifica até onde ela deve ser feita. Em geral, a entrega é considerada concluída no momento em que o produto é entregue ao destinatário — seja na portaria ou na porta de casa, dependendo das regras acordadas entre as partes envolvidas.
“Não há uma obrigação legal que diga que o entregador tem que subir até o apartamento. Isso depende do contrato de prestação de serviço e das regras internas do condomínio”, explica o advogado e especialista em direito do consumidor Pedro Henrique Duarte, membro da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB-RJ.
Regulamento interno dos condomínios: o que vale mais?
Cada condomínio possui um regimento interno que determina as regras de convivência entre os moradores. Essas normas podem limitar o acesso de pessoas externas, como entregadores, por motivos de segurança ou organização.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário (Ibradim), as convenções condominiais têm força legal dentro do âmbito do condomínio, desde que estejam de acordo com a legislação vigente.
“É importante lembrar que o síndico tem o dever legal de zelar pela segurança dos moradores, conforme o artigo 1.348 do Código Civil. Se houver histórico de furtos, por exemplo, impedir o acesso de entregadores pode ser uma medida preventiva”, afirma Ana Luiza Gouveia, síndica profissional certificada e membro da Associação das Administradoras de Condomínios do Estado de São Paulo (AABIC).
Direitos e limites do entregador: o que dizem os apps de delivery
Os principais aplicativos de entrega, como iFood, Rappi e Uber Eats, não impõem aos entregadores a obrigação de subir até o apartamento. Na prática, essa decisão costuma ser deixada ao critério do entregador, desde que ele possa concluir a entrega de forma segura.
Segundo a assessoria do iFood, “a plataforma recomenda que as entregas sejam realizadas no local indicado pelo cliente, mas respeita eventuais limitações impostas por prédios ou residências”. A empresa também afirma que incentiva a cordialidade e a boa comunicação entre entregador e cliente.
Para o SindimotoSP (Sindicato dos Motoboys de São Paulo), a obrigação de subir escadas em prédios sem elevador, ou de enfrentar obstáculos como falta de iluminação ou segurança, fere o direito do trabalhador de exercer suas funções em condições adequadas. “É um abuso pedir que o entregador suba vários andares carregando peso sem qualquer estrutura adequada para isso”, defende o presidente da entidade, Gilberto Almeida dos Santos.

Segurança dos moradores vs. segurança do entregador
Tanto os condomínios quanto os entregadores enfrentam riscos em suas rotinas. Moradores temem a entrada de desconhecidos em áreas comuns, enquanto entregadores, em muitos casos, enfrentam situações de violência, discriminação ou precariedade no trabalho.
Casos de entregadores proibidos de usar elevadores sociais ou obrigados a esperar do lado de fora do prédio em dias de chuva geram indignação e viralizam nas redes sociais. Em 2020, um episódio envolvendo um entregador humilhado em um condomínio de luxo em Valinhos (SP) gerou comoção nacional e reacendeu o debate sobre desigualdade social e direitos trabalhistas.
“Segurança e respeito devem andar juntos. Não se pode usar o argumento da segurança para justificar práticas discriminatórias”, alerta Luciana Temer, diretora-presidente do Instituto Liberta e ex-secretária de Assistência e Desenvolvimento Social de São Paulo.
A visão dos consumidores: comodidade ou direito?
Para muitos consumidores, especialmente idosos, pessoas com deficiência, ou famílias com crianças pequenas, a entrega na porta do apartamento é uma questão de necessidade e não apenas de comodidade.
A influencer e advogada Gabriela Prioli, por exemplo, já comentou em suas redes que “uma pessoa não pode ser obrigada a descer com um bebê no colo só porque o entregador não pode ou não quer subir. Há contextos que precisam ser levados em conta”.
Nesse sentido, consumidores também são orientados a detalhar nas observações do pedido se precisam que a entrega seja feita até a porta. Isso pode evitar mal-entendidos e tornar a experiência mais fluida para ambos os lados.
Conflitos entre moradores e entregadores: como resolver?
Os atritos não são raros. Em grupos de moradores, reclamações sobre entregadores que se recusam a subir são comuns, assim como relatos de entregadores que enfrentam hostilidade ao tentar realizar entregas nos andares.
A melhor saída, segundo especialistas, é o diálogo. “O bom senso é o melhor caminho. Moradores devem compreender os limites do trabalho dos entregadores, e os profissionais precisam respeitar as normas do local”, sugere José Roberto Soares, consultor em segurança condominial.

Algumas práticas recomendadas incluem:
- Condomínios estabelecerem um local apropriado e seguro para recebimento de entregas;
- Moradores comunicarem previamente à portaria quando esperam entregas especiais;
- Aplicativos permitirem a sinalização de necessidades específicas, como ausência de elevador ou preferências de entrega.
- Boas práticas para um delivery sem estresse Para que a experiência de entrega seja positiva para todos os envolvidos, especialistas recomendam:
- Informar com clareza o local da entrega no aplicativo;
- Evitar horários de pico, quando possível, para facilitar o acesso ao prédio;
- Ter empatia com o entregador, especialmente em condições climáticas adversas;
- Respeitar as normas do condomínio e buscar soluções com a administração caso enfrente dificuldades frequentes;
- Dar feedbacks construtivos nos aplicativos, tanto positivos quanto negativos, com educação e clareza.
Quem tem razão, afinal?
A resposta para a pergunta “entregador tem que ir até a porta do condomínio?” não é única. Tudo depende do contexto: das regras do condomínio, das condições de trabalho do entregador e das necessidades do consumidor. O ponto de equilíbrio está no respeito mútuo, na empatia e na comunicação clara.
O ideal é que tanto consumidores quanto entregadores e síndicos compreendam que estão inseridos em uma engrenagem social onde cada parte deve ser respeitada em suas limitações e direitos.
Enquanto a legislação não avança para estabelecer diretrizes mais claras sobre o tema, o caminho mais efetivo é o diálogo — seja com o síndico, com o entregador ou com o suporte dos aplicativos. Afinal, um delivery eficiente vai muito além de comida quente: ele começa com respeito e termina com satisfação.